segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Não será verdade que todos temos um sonho?

I have a dream…


Sentado, um grupo de pessoas assiste à exposição de um sonho: I have a dream. Tal como nós, é público. Mas ao grupo, esse sonho toca e incita-o a agir. E fá-lo querer contar uma história: uma história de amor e ódio mas, sobretudo, a história da juventude perdida ou mesmo nunca vivida. Passando à acção, preparam o espaço, preparam-se a si próprios: passaram de público a actores. Mas não são personagens: são eles próprios, um grupo de amigos que se reuniu para falar de si, da sua vida, do que os preocupa.


I have a dream: o sonho que é o teatro, o sonho que é agarrar o doce pássaro da juventude e mantê-lo consigo, o sonho que têm Under my skin. Mas, depressa o constatam, “já ninguém é jovem”. Será que, neste mundo alguém alguma vez o foi? Verificamos, ao longo do desenrolar da acção que estamosperante juventudes perdidas, destruídas pela ambição, pela luxúria, pela ambição, pelo mau uso dos dias em que existiu, restando a constatação dessa perda sobre a qual se Cry a river. O desequilíbrio é geral e a música acompanha essa perturbação: o tempo não pára, como não pára o movimento em cena. O bulício e agitação da cidade são a tradução de um tempo que escorre por entre os dedos como areia numa ampulheta cujo curso ninguém é capaz de inverter.


Mas não é só nas pessoas individuais que a ausência de juventude se revela: ela revela-se também no funcionamento de uma comunidade dominada por um cacique com um ideário velho e gasto, de ódio e autoritarismo. Stormy Weather, assola a cidade, velha pelas suas ideias e regras já fora de moda, que desaba sobre o único a manter uma (falsa) aparência de juventude: o jovem que em tempos fugiu para encontrar o sucesso que o faria regressar em glória à sua terra natal. Tal como aconteceu aos que ficaram, a sua vida falhou, e até a ligação à antiga estrela de cinema que lhe abriria as portas da glória se revela mais uma porta fechada. Ela avisa-o: passaste ao lado da única coisa que não podias dar-te ao luxo de desperdiçar: o teu tempo.” Curiosamente, é esta mulher, em fuga de si própria, quem acaba por nos mostrar a medida da realidade: no momento em que descobre que, afinal, o seu coração não está morto como pensava, toma ainda consciência do ponto de depravação que a sua vã busca de juventude a levou. Perdida (ou nunca vivida) a frescura da juventude, a excitação, a “vida” consegue-se com álcool, haxixe, sexo, dinheiro e comprimidos: “a sua vaidade é infinita; quase tão infinita quanto a versão que têm por si próprios”.


Amazing grace. A salvação vem de fora: um telefonema, intrusão do exterior no casulo de recusa que a Princesa criou, mostra-lhe que a realidade não é o que pensava. Com as câmaras assestadas sobre si, por entre lágrimas, ela renasce para a vida – e para um novo filme – deixando para trás tudo a que se agarrou em tempos de infortúnio, e Chance, a sua ilusão de juventude, é abandonado a favor de um novo I have a dream.


Entre a vida e a ilusão do teatro, o espectáculo desenrola-se em sucessivos takes e experiências, com a acção cortada por um realizador que assume o carácter experimentalista da história que o grupo decidiu contar. E se no sonho se começa, no sonho se termina: evoca-se o que foi a imagem desta juventude não vivida no grande écran e a promessa da concretização do sonho no mundo em que vivemos. Não será verdade que todos temos um sonho?


Maria João da Rocha Afonso